Como as condições ambientais regulam o crescimento dos canaviais e o impacto do período de colheita na fisiologia da cana-de-açúcar.
O clima de 2020 foi marcante para os canaviais do centro-sul brasileiro. Depois de um período de chuvas regulares e abundantes desde novembro de 2019, um período seco teve início em meados de marco de 2020 e se estendeu até outubro, com poucos eventos isolados de chuva ao longo dessa fase seca. Agora que a safra já está encerrada na maioria das usinas, os olhares voltam para 2021, buscando entender o que é possível esperar da próxima safra, considerando as condições vigentes até o momento.
A construção desse cenário para a próxima safra, dado o longo período de colheita da cana-de-açúcar, nos remete ao fato de que o clima afeta de modo específico os canaviais conforme a época de colheita. Normalmente, por simplicidade, dividimos o período de safra no hemisfério Sul em três fases principais: início (abril-junho), meio (julho-setembro) e final (outubro-dezembro).
Evidentemente, neste momento do ano, as áreas de final de safra acabaram de ser colhidas (ou ainda estão em fase de colheita) e sua formação está ainda completamente em aberto, dependendo fortemente das condições do tempo a partir de dezembro. Já os canaviais de meio de safra e, principalmente, os colhidos no início já tiveram uma boa parte do seu ciclo cumprido, permitindo a análise de cenários de modo mais realista.
No entanto, antes de discutirmos os cenários de produtividade para a próxima safra, vale a pena entender como as condições ambientais regulam o crescimento dos canaviais e, especialmente, como o período de colheita impacta a fisiologia da cana-de-açúcar e explica os padrões produtivos que observamos nos canaviais brasileiros.
É bem sabido que os canaviais de início de safra, em termos de produtividade colmos (TCH), produzem mais que os canaviais de meio de final de safra. No Brasil, contudo, é comum em parte da comunidade ligada ao setor canavieiro que a explicação para este padrão de decréscimo produtivo ao longo da safra que a seca seja a causa preponderante, mas isso não condiz com o que as evidências científicas trazem como explicação para este fenômeno.
Resultados experimentais da Austrália e África do Sul (McDonald et al. 1999; McDonald,2006, Inman-Bamber 1994), em canaviais plenamente irrigados mostram exatamente o mesmo padrão, com decréscimo de produtividade entre as áreas colhidas de Abril e Dezembro, mantendo-se todas as demais condições similares e cuidando para que o manejo desses tratamentos seja exatamente igual. Esse delineamento experimental é importante para assegurar que o único efeito entre eles sejam a variação sazonal do clima e a respectiva resposta fisiológica da cultura (McDonald et al. 1999). Assim, tem-se que, para o caso brasileiro, onde os canaviais são cultivados predominantemente em condição de sequeiro, que o período seco é um agravante para os canaviais de final de safra, mas não a causa principal do baixo TCH dessas áreas.
Apesar dos diversos trabalhos científicos evidenciando o efeito da época de colheita no TCH (Julien and Delaveau 1977, Inman-Bamber 1994, Singels et al. 2005, McDonald et al. 1999, McDonald 2006, Gilbert et al. 2006, Donaldson et al. 2008), as causas da baixa produtividade no final de safra ainda não estão totalmente entendidas pela ciência. Interessantemente, e para tornar ainda mais complexo o entendimento dessa questão, os canaviais de início de safra, apesar de atingirem maior TCH, absorvem menos radiação solar em comparação com os canaviais de final de safra (Singels et al., 2005).
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Algumas hipóteses são mais aceitas pela comunidade científica para explicar o fenômeno, dentre elas: a) as canas de final de safra reduzem a taxa de crescimento durante o inverno, mesmos sob condições hídricas ótimas, e não são capazes de retomar as taxas máxima de crescimento ao longo do ciclo; fenômeno este conhecido como “fase de crescimento reduzido” (Park et al 2005). Embora canaviais de início de safra provavelmente também experimentem esta “fase de crescimento reduzido” com o envelhecimento, ele é bem menor do que nas áreas de final de safra, que envelhecem mais rápido do ponto de vista de acúmulo de graus dia. Outras possibilidades para explicar o fenômeno podem ser a queda na concentração de nitrogênio foliar, causando baixa assimilação, aumento da taxa de respiração consumindo mais fotoassimilados, ou aumento na inibição da fotossíntese por feedback de sacarose, acamamento etc.
Feita essa explanação, podemos voltar aos cenários possíveis para os canaviais de 2021. O potencial de TCH para as áreas de início de safra provavelmente é menor do que observamos em 2020, com expectativa de queda na produtividade por causa do longo e intenso período de seca e atraso no início das chuvas na primavera de 2020. No entanto, esta queda pode ser minimizada ou até mesmo eliminada se as condições de temperatura ficarem acima da média e as chuvas forem regulares durante o verão, assegurando condições para uma rápida formação da copa e altas taxas de ganho de biomassa nos canaviais de início de safra. Isso porque, como comentado acima, os canaviais de início de safra têm uma habilidade responsiva ao clima maior do que aqueles das demais épocas do ano.
Assim, vale frisar, tal incerteza quanto ao nível de TCH da próxima safra se deve exatamente à elevada taxa potencial de crescimento das áreas de início quando as condições são ótimas, o que mantém esta possibilidade de compensação parcial do atraso causado pela seca de 2020. Desse modo, apesar da seca, podemos ter uma reversão de expectativas e até mesmo atingir níveis de TCH parecidos com os observados na safra colhida em 2020, ainda que o cenário mais provável seja de queda de TCH no início de safra. Ainda, a conjuntura do setor é positiva e os canaviais têm sido manejados de modo mais adequado nas últimas safras, o que os torna mais resilientes ao estresse por falta d ́água e acentua o grau de incerteza para a abertura da próxima safra.
Finalmente, como apoio nessa fase de construção de cenários futuros, os modelos de simulação baseados em processos, por considerar o detalhes fisiológicos da cultura, podem ajudar bastante nesta fase de construção de cenários, nos trazendo insights sobre o efeito do clima nos canaviais e isolando o fator abiótico daqueles associados ao manejo, como a qualidade da adubação e da colheita mecânica, do nível do controle fitossanitário ou a presença de daninhas. Por representarem o estado da arte do conhecimento humano sobre a fisiologia da cana-de-açúcar, este tipo de modelo funciona de modo não linear em relação aos fatores exógenos e, por isso, conseguem analisar situações que não somos capazes de compreender usando apenas a mente humana. Nessa hora de definição de estratégias para a próxima safra, sempre vale a pena unir a experiência com a ciência para reduzir as incertezas que a atividade agrícola sempre carrega consigo.
REFERÊNCIAS
Donaldson, R.A., Redshaw, K.A., Rhodes, R. Van Antwerpen, R., 2008. Season effects on productivity of some commercial South African cultivars, I: Biomass and radiation use efficiency. Proc. S. Afr. Sugar Technol. Assoc. 81, 517-527
Gilbert, Robert A., James Shine Jr., Jimmy Miller, Ronald W Rice, C. R. Rainbolt 2006. The effect of genotype, environment and time of harvest on sugarcane yields in Florida, USA. Field Crops Research 95: 156–170.
Inman-Bamber, Geoff N. 1994 Effect of age and season on components of yield of sugarcane in South Africa. Proceedings of The South African Sugar Technologists’ Association.
Julien, M.H.R., P. Delaveau. 1978. The effects of time of harvest on the partitioning of dry matter in three sugarcane varieties grown in contrasting environments. Proc. XVI Congr. ISSCT, pp. 1755–1770.
McDonald, Lisa, 2006. The effect of time of ratooning on sugarcane growth in the Burdekin. Proc. Aust. Soc. Sugar Cane Technol., 28: 1-12.
McDonald, Lisa, Andrew Wood, Russell Muchow. 1999. A review of the effect of harvest time on sugarcane productivity. Proc. Aust. Soc. Sugar Cane Technol., 21: 177-184.
Park, S.E., Robertson, M., Inman-Bamber, N.G., 2005. Decline in the growth of a sugarcane crop with age under high input conditions, in: Field Crops Research. Elsevier, pp. 305–320.
Singels, A., Smit, M.A., Redshaw, K.A., Donaldson, R.A., 2005. The effect of crop start date, crop class and cultivar on sugarcane canopy development and radiation interception. Field Crops Research. 249–260.
Prof. Fábio R. Marin
Coordenador do Sistema Tempocampo da ESALQ/USP