O país dos solos férteis, abençoado por reservas minerais, com fartura de água e um povo dedicado e amigável. Esse é o retrato do Brasil visto por Plínio Nastari, Ph.D. em economia agrícola, fundador da Datagro, consultoria agrícola independente, que produz análises e dados primários sobre as principais commodities agrícolas brasileiras, atuando há 37 anos junto ao setor privado e público.
Dono de um currículo quilométrico e grande referência do setor, o professor não tem dúvida do potencial brasileiro, mas guarda suas convicções sobre a inércia brasileira — sobretudo quando o tema é biocombustíveis. “Sou muito otimista com o Brasil. Mas acho que o Brasil cresce à noite, quando os políticos estão dormindo. Porque eles acordam de manhã e fazem tudo para que algumas coisas não andem com a rapidez que deveriam.”
Plínio Nastari acredita que o agro, em geral, é uma das grandes forças brasileiras. “A gente só precisa criar políticas públicas que sejam enxutas — tigre, não elefante — que levem a ação do setor privado à direção mais eficiente, recomendável para explorar esse potencial”, diz.
Amanhã, ele estará no Palácio do Planalto, na solenidade em que o presidente Jair Bolsonaro anunciará um plano de incentivo à produção e ao uso de biogás e biometano. Não está descartado que o presidente dirija um ônibus movido a biometano que, em 9 de março, fez uma viagem inaugural em Ribeirão Preto (SP), como parte do evento da abertura da safra de cana, promovido pela Datagro.
Não é à toa que o país volta agora seu olhar para os biocombustíveis. Com a crise do preço dos combustíveis e a guerra na Ucrânia, o Brasil tem vantagem nessa área, enquanto a maior parte do mundo corre atrás. “Os nossos biocombustíveis são a saída para essa crise e o passe para sustentabilidade”, disse Nastari, em entrevista ao Correio.
Nastari explica que a guerra da Ucrânia cria um problema de insegurança energética e muitos países vão postergar suas metas ambientais por falta de opção.
“Está havendo uma aceleração de intenção de investimento em energias renováveis no mundo inteiro, principalmente no Hemisfério Norte, para produção de hidrogênio verde. Nós já temos esse hidrogênio verde através do etanol e do biometano. Nossa tecnologia resolve esses problemas de forma brilhante. Só precisa ser entendida como tal.”
Para ele, o etanol vai demonstrar sua força competitiva agora, diante da escalada de preço da gasolina e da recuperação parcial da safra de cana, prejudicada pela crise hídrica. “O mix de produção da safra de cana deve ser mais alcooleiro, o que vai fazer com que o etanol chegue ao consumidor a preços mais competitivos. Esperamos que a queda do preço chegue rapidamente ao consumidor, na bomba. Isso é fundamental”, acredita.
Fundamental não apenas para o consumidor, mas para o país como um todo. Com etanol, segundo ele, o país economizou 25% da nossa reserva — nesse período, uma economia, em divisas, de US$ 610 bilhões.
“Para um país que tem US$ 356 bilhões de reserva, U$ 610 bilhões é um número importante. Só que tem pouca gente que sabe disso. No Planalto, na Esplanada, nos governos estaduais, na sociedade como um todo, nos formadores de opinião, na imprensa, na academia.”
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
O Brasil é uma potência em biogás?
O potencial de produção de biogás e biometano aqui no Brasil está estimado em 120 milhões de m³ por dia. Esse número significa quatro vezes a capacidade do gasoduto Brasil-Bolívia, que é de 30 milhões de m³/dia. E equivale a 44% do consumo de diesel no Brasil. Isto é geração distribuída de gás, complementando a distribuição de gás natural de origem fóssil.
Qual é o desafio então?
O gás fóssil está basicamente distribuído na região costeira do Brasil, onde tem gasoduto. E como faz para chegar com gás no interior? Você precisa construir gasodutos, precisa ter rede. O biogás e o biometano chegam ao interior porque são gerados dentro do país, com o aproveitamento de resíduos sólidos urbanos e resíduos agroindustriais. O biogás tem a vantagem, ainda, de não ter material particulado e reduz a poluição com queima de óleo diesel para geração de eletricidade. A eletricidade de diesel e óleo combustível é muito cara. O biogás é uma tecnologia interessante para o consumidor, principalmente, porque é mais econômica, mais limpa. Ela resolve dois problemas: neutraliza a carga poluidora de efluentes e gera energia. E ajuda também no conceito de mobilidade sustentável.
O governo vai lançar um ônibus movido a biometano?
Amanhã, o governo federal vai anunciar um plano de incentivo à produção e ao uso de biogás e biometano; e o plano nacional de biogás e biometano. Haverá a presença dos ministros de Minas e Energia e do Meio Ambiente, e do presidente da República, lá no Palácio do Planalto.
Por que um veículo movido a biometano é melhor do que o modelo elétrico?
O biometano é um biocombustível muito próximo do hidrogênio verde. Ele é prático de ser capturado, armazenado e distribuído. Mas, diferentemente do hidrogênio, o biometano — assim como o etanol — pode ser distribuído em tanques de baixa pressão. O biometano é interessante porque substitui o diesel, enquanto o etanol substitui a gasolina. É muito interessante do ponto de vista de segurança energética. É uma energia que está disponível, tem um potencial enorme, e a tendência é que cresça cada vez mais.
Há possibilidade de o Brasil difundir essa produção?
Sim, porque há resíduos sólidos urbanos e agroindustriais no Brasil inteiro. E em regiões onde não existe rede de distribuição e transmissão de eletricidade, é possível ter geração localizada de biogás e biometano e, naquela localidade, gerar eletricidade para distribuição local renovável.
Qual a diferença entre o biogás e o biometano?
O biogás é o primeiro gás gerado na biodigestão. Ele tem uma concentração de metano de aproximadamente 48%. O resto é CO². O biogás purificado — quando você separa metano do CO² — muda de nome. Aí a concentração de metano passa a ser no mínimo de 97%, e ele se chama biometano. O biometano, em termos de especificação, é igual ao gás natural fóssil para a geração da eletricidade, uso industrial e uso veicular.
O carro elétrico é uma boa saída para o Brasil?
É uma das opções tecnológicas de que o Brasil dispõe. Mas é uma tecnologia ainda cara. O tíquete médio de um veículo elétrico a bateria no Brasil, hoje, é de R$ 490 mil. Existem outras formas de eletrificação; você pode ter eletrificação com combustível líquido, que é o híbrido, que pode utilizar etanol, um combustível de baixa pegada de carbono; e você pode ter a célula- combustível, que também pode usar etanol ou biometano. São motorizações eletrificadas também.
Qual é a diferença de emissões, do ponto de vista ambiental?
Hoje, o veículo flex comum, que representa 86% da frota de veículos leves, emite 46 gramas de CO² equivalente por quilômetro. O híbrido usando etanol, que já está disponível no Brasil, emite 29 gramas. O elétrico a bateria, padrão europeu, usando energia média europeia, está emitindo 92 gramas. E a emissão média dos veículos na Europa está em 122 gramas. Passar de 122 para 92 é um avanço, mas o Brasil já avançou muito mais, com a tecnologia de carro flex no etanol, que está emitindo 46, e com a eletrificação com etanol, que é o híbrido, com emissão de 29. E tem a oportunidade de continuar diminuindo essa emissão, na hora em que o diesel que ainda é utilizado no plantio de cana for substituído por biometano.
É uma diferença significativa?
Não tem hoje veículo mais limpo no mundo do que o híbrido usando etanol que temos no Brasil. É uma tecnologia que precisa ser reconhecida, valorizada, preservada. E mais investimentos em motorizações desse tipo precisam continuar sendo realizados para ampliar a oferta.
Mas essa não é a tendência no Brasil?
Infelizmente, não há muito entendimento de que existe esta rota disponível. É por isso que precisa melhorar a compreensão desta grande oportunidade para o Brasil. É a oportunidade para serem criadas políticas públicas que valorizem a continuidade e a expansão desta tecnologia.
Esse é o trabalho que o senhor tem feito?
Sim, ao longo dos últimos 45 anos.
O senhor tem ido muito à Índia. O que tem visto lá?
A Índia tem três grandes problemas. Está numa situação equivalente à do Brasil há 45 anos. Eles têm uma dependência por importação de petróleo de 81%, a mesma que a gente tinha no Brasil em 1975. Eles importam 4,3 milhões de barris por dia de petróleo e derivados. O Brasil produz 2,9 milhões de barris. Eles gastam US$ 110 bilhões por ano com essas importações. Eles têm um problema de segurança energética e de balança comercial. Segundo problema: poluição. Das 50 cidades mais poluídas do mundo, as 25 primeiras estão na Índia, com índices de qualidade do ar muito ruins. A concentração de material particulado fino na Índia varia em torno de 135 microgramas de material particulado por m³ de área, com picos demais de mil.
O que isso significa?
Vou dar um exemplo do que deveria ser ideal. A Organização Mundial da Saúde preconiza um máximo de 25 microgramas por m³ de área. São Paulo, que tem mais de 20 milhões de habitantes e mais de 8,5 milhões de automóveis, está classificada como a cidade de número 1.476 em índice de poluição do mundo. Tem um índice de material particular de 16 microgramas, só. Como pode uma cidade desse tamanho ter céu azul, assim como outras metrópoles brasileiras?
Como pode? Por quê?
Porque, por exemplo, em São Paulo, 64% da gasolina foi substituída por etanol, ou está sendo. E assim em muitas outras localidades. Ribeirão Preto, 73% de substituição; em Goiás e Distrito Federal, 56%. Só que ninguém sabe. Por que é importante a substituição de gasolina por etanol? Porque o etanol não emite material particulado. É zero. O material particulado carrega substâncias cancerígenas, que entram na nossa corrente sanguínea pelos alvéolos. Isso é péssimo. Quando a gente apresenta esses dados na Índia, eles ficam impressionados.
E o terceiro problema indiano?
Eles têm grandes excedentes de cana-de- açúcar, que, até recentemente, usavam para produzir açúcar de exportação e colocar no mercado mundial com subsídio. Nós fomos lá e dissemos: ‘Em vez de importar petróleo, ter poluição na cidade e exportar açúcar com subsídio, por que não fazem mais etanol?’. Bom, as autoridades lá na Índia são muito rápidas. Em pouco tempo, eles falaram: ‘Está certo. Nós tínhamos um cronograma de botar 20% de etanol na gasolina até 2030. Nós vamos começar a fazer isso em 2023, e a gente quer que até 2025 toda a Índia tenha 20%. Segundo, nós vamos autorizar, já em 2022, a venda de carros flex a etanol, como no Brasil, e vamos autorizar, este ano, a distribuição de álcool puro’. Começaram já.
Qual a conclusão?
À hora em que as pessoas têm informação com base científica e são eliminados preconceitos, há uma compreensão de que essa tecnologia é acessível, escalável, porque ela pode começar pequena e ir crescendo ao longo do tempo. Ela é replicável, porque não tem barreira tecnológica significativa. É acessível para o consumidor, usa infraestrutura disponível. E ela permite que a indústria automobilística atinja os limites de emissão mais rigorosos do mundo, com uma tecnologia acessível para o consumidor. Então é importante que seja reconhecida e reconsiderada, para que continue a ser estimulada em investimentos.
Nessa perspectiva, o Brasil está em vantagem?
Esta tecnologia permitiu ao Brasil substituir 3,3 bilhões de barris de gasolina em 45 anos, em um país que tem reserva de petróleo condensado de 12,7 bilhões de barris, incluindo o pré-sal. Com etanol, a gente economizou 25% da nossa reserva. Nesse período, é uma economia, em divisas, de 610 bilhões de dólares. Para um país que tem 356 bilhões de dólares de reserva, 610 bilhões é um número muito importante. Só que tem pouca gente que sabe disso. No Planalto, na Esplanada, nos governos estaduais, na sociedade como um todo, nos formadores de opinião, na imprensa, na academia…
Por quê?
Porque, infelizmente, a gente não valoriza o que tem de bom aqui no Brasil. E que precisa ser melhor conhecido. Esse é o trabalho que a gente está tentando fazer, para que as pessoas compreendam que existem opções para mitigar o aquecimento global, melhorar o problema de poluição; de forma econômica, acessível para o consumidor, sem depender de modelos apropriados para outros países, mas que talvez não sejam a melhor opção ou opção prioritária num país como o Brasil, ou a Índia.
Com a guerra, é aconselhável o Brasil contar mais com etanol?
Sem dúvida, porque a guerra da Ucrânia cria um problema de insegurança energética. Infelizmente, muitos países estão postergando suas metas ambientais por falta de opção. Muitos países que estavam planejando avançar rapidamente na área ambiental estão tendo que voltar a usar carvão, óleo combustível, ao invés de alternativas mais limpas. Está havendo uma aceleração de intenção de investimento em energias renováveis no mundo inteiro, principalmente no Hemisfério Norte, para produção de hidrogênio verde. Mas depois que você obtém o hidrogênio, você tem um problema para aplicá-lo em mobilidade, porque ele é muito dispendioso para ser armazenado e distribuído. Nós já temos esse hidrogênio verde através do etanol e do biometano. Nossa tecnologia resolve esses problemas de forma brilhante. Só precisa ser entendida como tal.
Qual a perspectiva para os próximos meses?
Este ano em particular, em que o preço do petróleo e do gás subiu tanto, nós deveremos ter uma ampliação da produção de etanol, porque nos últimos dois anos nós tivemos uma crise hídrica sem precedentes nos últimos 90 anos. Mas este ano a gente já tem uma safra com uma recuperação parcial, e a gente já deve aproximar a produção de etanol do recorde que foi atingido em 2020. Além disso, o mix de produção da safra de cana deve ser mais alcooleiro, o que vai fazer com que o etanol chegue ao consumidor a preços mais competitivos. Esperamos que a queda do preço chegue rapidamente ao consumidor, na bomba. Isso é fundamental.
Com a escalada do preço da gasolina, a saída vai ser o etanol?
Sim, o etanol vai mostrar sua força como alternativa de energia local para transporte, que é sustentável do ponto de vista econômico, ambiental e social, porque gera emprego descentralizado.
O Brasil é um país viável?
Extremamente viável. Sou muito otimista com o Brasil. Mas acho que o Brasil cresce à noite, quando os políticos estão dormindo (risos). Porque eles acordam de manhã e fazem tudo para que algumas coisas não andem com a rapidez que deveriam. Então, eu acredito muito no Brasil, que tem potenciais enormes. O agro, em geral, é uma das grandes forças. Mas não só isso. O Brasil tem como recuperar sua indústria, que foi sucateada nas últimas duas décadas e meia. É um país cheio de potencial porque foi abençoado com reservas minerais, com solos férteis, com água, com um povo dedicado, amigável. A gente só precisa criar políticas públicas que sejam enxutas — tigre, não elefante — que levem o setor privado à direção mais eficiente, recomendável para explorar esse potencial. Correio Braziliense