Instalações devem começar a produzir querosene sintético para a aviação em 2022. Combustíveis sustentáveis são vistos como chave para neutralidade climática no setor, responsável por 2% a 3% das emissões globais de CO2.
No dia em que a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), que engloba 290 companhias aéreas, anunciou o compromisso de neutralizar todas as emissões de CO2 do setor até 2050, a organização sem fins lucrativos Atmosfair abriu a primeira fábrica do mundo a produzir combustível limpo para aviões.
O grupo, que oferece compensações para as emissões de voos, anunciou nesta segunda-feira (04/10) que sua unidade em Emsland, no norte da Alemanha, deverá começar a produzir oito barris (cerca de 1 tonelada) de querosene sintético por dia no início de 2022. A Atmosfair não revelou quanto o projeto custou ou como foi financiado.
O querosene sintético, também chamado de e-kerosene ou power-to-liquid (PtL), é visto como tendo um enorme potencial para reduzir a pegada de carbono da indústria da aviação. Mas há algumas razões pelas quais o combustível sintético, ou eletrocombustível, ainda não decolou.
Voar é uma das maneiras mais poluentes de viajar, porque os aviões são alimentados por querosene fóssil. O setor de aviação é , e sua descarbonização será um enorme desafio.
Por que querosene sintético?
O querosene sintético é um tipo de combustível sustentável para aviação (SAF, na sigla em inglês) que pode ser misturado com combustível convencional para reduzir as emissões de voos.
Os SAFs são principalmente biocombustíveis produzidos a partir de matérias-primas sustentáveis, tais como resíduos agrícolas. Eles são vistos como uma alternativa promissora porque podem reduzir as emissões em até 80% em comparação com o querosene fóssil.
A fábrica da Atmosfair em Emsland tem como objetivo produzir querosene sintético neutro em carbono combinando hidrogênio gerado por eletricidade renovável (de turbinas eólicas próximas) e dióxido de carbono sustentável — capturado do ar e de biomassa.
O querosene sintético resultante deverá ser misturado com querosene convencional e transportado para o aeroporto de Hamburgo para abastecer aviões, inclusive da companhia aérea alemã Lufthansa.
Os motores atuais podem funcionar com até 50% de combustível sustentável, mas isso está longe de ser uma realidade no momento. A produção de SAFs responde atualmente por cerca de 0,1% do total do combustível de aviação consumido globalmente, de acordo com a Iata.
Quanto combustível sustentável deverá ser usado?
Alguns governos introduziram cotas em um esforço para elevar esses números. A Alemanha, por exemplo, quer que 0,5% das 10 milhões de toneladas utilizadas pela indústria da aviação alemã a cada ano sejam de querosene sintético até 2026, e a proporção deve aumentar para 2%, ou 200 mil toneladas, até 2030.
A União Europeia propôs o estabelecimento de uma cota de 2% de SAFs a partir de 2025, a qual deve chegar a 5% — incluindo uma subcota de 0,7% de querosene sintético — a partir de 2030.
O querosene sintético vai virar o jogo?
O cumprimento dessas metas vai exigir um aumento maciço da produção e, como salientou a ministra alemã do Meio Ambiente, Svenja Schulze, na inauguração da fábrica de querosene sintético, isso só faz sentido se se aumentar o uso de energias renováveis ao mesmo tempo.
“Os combustíveis PtL só servem à proteção climática se hidrogênio verde for utilizado. Para o hidrogênio verde, precisamos de muito mais eletricidade proveniente de energias renováveis”, disse Schulze, acrescentando que a tecnologia está disponível. “Agora cabe às empresas impulsionar isso, e espero que muitas atendam ao chamado.”
A fábrica da Atmosfair em Emsland é pequena e não foi projetada para funcionar no longo prazo, segundo o CEO e fundador da organização, Dietrich Brockhagen. “Mas queríamos dar o primeiro passo na Alemanha para experimentar a tecnologia aqui e ganhar experiência”, disse.
Ulf Neuling, líder do Grupo de Combustíveis Renováveis da Universidade de Tecnologia de Hamburgo, disse que a fábrica da Atmosfair é “um passo na direção certa para impulsionar a produção de eletrocombustíveis para a aviação e para começar a entrar na aplicação comercial”.
Mas ele enfatiza que, em última análise, será preciso fábricas maiores e com maior capacidade de produção se a Alemanha quiser reduzir o custo dos eletrocombustíveis e impulsionar a tecnologia.
Preço elevado e consumo intensivo de energia
O querosene sintético é atualmente de quatro a cinco vezes mais caro do que o combustível de avião convencional. Também é preciso muita energia para produzi-lo, o que requer grandes quantidades de dióxido de carbono verde e hidrogênio verde.
Somente para alimentar voos domésticos com eletrocombustíveis seria necessário mais energia renovável do que a Alemanha é capaz de produzir atualmente.
Cerca de 40% da eletricidade que a Alemanha produz ainda vem de fontes fósseis; e 45% vem de fontes renováveis, mas muito disso é desviado para ajudar outros setores a se descarbonizar.
Dietrich Brockhagen, da Atmosfair, diz que as atuais taxas de crescimento de eletricidade verde significam que a aviação mundial poderia ser 100% abastecida pelo querosene sintético em menos de uma década. Mas há um porém: “Há concorrência com outros setores em que a eletricidade é mais necessária, tais como a eletrificação rural. Portanto, é possível fazê-lo, mas é uma questão de alocação e distribuição de recursos e, portanto, de prioridades políticas.”
Neuling acrescenta que a enorme demanda por energia verde significa que a Alemanha terá que importar eletricidade de outros lugares com alto potencial para produzir eletricidade renovável a baixo custo, como o Norte da África, o Oriente Médio ou a América Latina.
A indústria da aviação atingirá a neutralidade climática?
Se produzido com eletricidade renovável e disponível em uma escala maior e mais acessível, o querosene sintético poderia desempenhar um papel significativo para tornar as viagens aéreas livres de CO2 — algo que provavelmente levará décadas para acontecer.
Manuel Grebenjak, um ativista da rede Stay Grounded, diz que o foco em testar combustíveis alternativos para permitir a continuidade das viagens aéreas é uma distração do problema real.
“Estamos em uma emergência climática e não temos tempo a perder. Somente uma redução no tráfego aéreo pode reduzir as emissões com rapidez suficiente neste momento”, afirma.
“Ao mesmo tempo, ainda não produzimos energia renovável suficiente. Então temos que decidir: queremos usar a preciosa energia verde para coisas essenciais ou para atividades de luxo de uma minoria global?”, questiona.
Além do CO2, aviões liberam outros gases e vapor de água na atmosfera, os quais também contribuem para o aquecimento global. A Atmosfair afirma que otimizar as rotas e altitudes de voo poderia ajudar a praticamente zerar esse tipo de emissões. Mas a organização reconhece que isso exigiria mais combustível e, portanto, mais eletricidade no longo prazo, considerando que a produção de querosene sintético requer tanta energia — mais um problema a ser resolvido para que voar de maneira ecológica se torne realidade. ( Deutsche Welle)