Por Felipe Kury
Muito se tem discutido sobre a reindustrialização do Brasil. Uma pesquisa recente da FGV IBRE – Instituto Brasileiro de Economia, indica uma queda de aproximadamente 1% ao ano na produtividade da indústria de transformação nas últimas três décadas. A participação brasileira na indústria global caiu quase pela metade nos últimos 20 anos. Um exemplo claro evidenciado pelo setor farmacêutico que, na década de 1980, produzia 55% dos insumos que utilizava. Já em 2020, este percentual caiu para 5%.
A reindustrialização do país clama por várias reformas estruturais com o objetivo de restabelecer a competitividade e a produtividade da nação – o que, de fato, requer uma política de estado bem elaborada e uma visão estratégia de longo prazo. Reformas, tais como a tributária, administrativa e política, são essenciais e precisam ser aceleradas. Além disso, o país necessita avanços significativos na educação, qualificação técnica, adoção de novas tecnologias (indústria 4.0), infraestrutura & logística e mais acesso a capital.
Assim como no Brasil, mas também em muitos países em desenvolvimento, a solução não é apenas financeira. Mas, sim, em colocar maior foco no aumento da produtividade e na forma como se organiza e aloca mão de obra e recursos financeiros. Se o Brasil melhorasse a sua produtividade e acertasse a política fiscal (controle e disciplina nas contas públicas), teria muito mais acesso a capital para financiar o seu crescimento, seja com recursos de investidores domésticos e/ou estrangeiros.
Um dos pilares para a melhoria de produtividade e competividade do país, certamente, passa pela questão da segurança e transição energética. Neste ponto, a produção de gás natural tem uma posição estratégica e de destaque, pois, além de contribuir de forma significativa com estes temas, pode aumentar estes atributos em setores da economia, especialmente se ofertado em quantidades adequadas e a preços competitivos. Portanto, existe um senso comum no mercado de que o gás natural pode ter grande relevância como vetor de desenvolvimento econômico e reindustrialização do Brasil.
Mas, como aumentar a oferta de gás natural no curto/médio prazo com preços competitivos? Antes, é importante mencionar que o desenvolvimento de um mercado de gás natural aberto, dinâmico e competitivo, é complexo e pode levar décadas, à exemplo do que vem enfrentando a União Europeia para estabelecer um mercado com estas características.
No Brasil, é ainda mais complexo, em função das limitações na oferta doméstica e a posição do agente dominante. A maior parte do gás natural, cerca de 83%, é produzido pela Petrobras, na região do polígono do pré-sal – ou seja, necessita investimentos vultosos em infraestrutura de escoamento da produção por estar longe do continente, em águas profundas e/ou ultra profundas.
Além disso, é importante lembrar que a maior parte do gás natural produzido no pré-sal é associado ao petróleo e tem grande teor de gás carbônico (CO2).Assom portanto, para ser utilizado e/ou reinjetado, necessita ser tratado nas unidades de produção em alto mar e/ou unidades de processamento de gás natural (UPGNs) em terra.
Segundo boletim de produção da ANP (Agência Nacional de Petróleo), de maio de 2023, a produção doméstica cresceu próximo de 9,6% se comparado ao mesmo mês do ano anterior, atingindo o volume de 144,4 Mm3/dia, sendo que a reinjeção também cresceu e no mesmo período atingiu cerca de 74,9 Mm3/dia, resultando em uma oferta líquida nacional de cerca de 51 Mm3/dia. Para fazer frente à demanda nacional, na ordem 70 Mm3/dia, o país importa um volume de 15-18 Mm3/dia de gás da Bolívia (via GASBOL) e o restante através dos terminais de GNL (Gás Natural Liquefeito).
Sendo assim, a oferta de gás natural para o sistema é bastante limitada pela necessidade de reinjeção, pela posição dominante da Petrobras e pela dependência da importação. O resultado é que a demanda industrial se encontra praticamente estagnada há duas décadas, na ordem de 40-43 MMm3/dia – este número inclui o consumo nas refinarias e fábricas de fertilizantes nitrogenados.
Desta forma, para que o gás natural se torne efetivamente um vetor de desenvolvimento econômico e de reindustrialização, é necessário que haja um aumento da oferta de gás a preços competitivos e que se defina melhor a contribuição da Petrobras neste novo mercado. A posição dominante da empresa nos diversos elos da cadeia pode inibir novos investimentos, novos entrantes e desacelerar o processo de transformação do setor.
O que fazer para melhorar a oferta de gás natural no curto/médio prazo? Certamente, o principal foco poderia ser o aumento da oferta de gás natural proveniente do pré-sal. A questão não é simples, pois envolve impacto na produtividade dos campos e captura CO2 através da reinjeção de gás natural, além da necessidade de se concluir e/ou desenvolver rotas de escoamento da produção para o continente.
Adicionalmente, existe a necessidade de continuar desenvolvendo políticas públicas e incentivos para aumentar a produção de gás natural convencional e não convencional (shale gas) no onshore e do biogás, pois todas estas fontes podem significar contribuições importantes para o aumento da oferta doméstica, gerando preços mais competitivos.
Outra questão fundamental diz respeito ao posicionamento da Petrobras neste contexto. Em meados de 2019, a empresa firmou com o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), um termo de cessação de conduta (TCC) com o objetivo de possibilitar a criação de um mercado mais aberto, dinâmico e competitivo nos diversos elos da cadeia. Importante destacar que a Petrobras, de fato, ainda exerce o monopólio em diversos segmentos do mercado. Portanto, resta entender qual será o direcionamento do CADE nesta questão, já que, recentemente, a empresa manifestou interesse em rever os termos do TCC firmado.
As iniciativas de longo prazo também são de vital importância para a transformação do mercado de gás natural e a continuidade no fluxo de novos investimentos. Por exemplo, intensificar a exploração e produção de petróleo em novas fronteiras (como a Margem Equatorial), a revisão do marco legal do licenciamento ambiental e novos investimentos em infraestruturas e logística essenciais – tais como incentivos para ampliação da malha dutoviária, novas rotas de escoamento da produção, unidades de tratamento (UPGNs), além de terminais de GNL para facilitar a importação – contribuindo de forma significativamente para o aumento da oferta de gás natural a preços competitivos.
O Governo também estuda a possibilidade implementar a troca de óleo da União por gás natural, através da PPSA-Pré-Sal Petróleo SA, em um programa de gas release, onde a Petrobras renunciaria parte dos volumes comercializados para prover maior liquidez ao mercado. Porém, sabe-se que estas iniciativas são complexas e de difícil operacionalização, de forma que, apesar de serem iniciativas importantes, não devem contribuir para a solução do problema no curto prazo.
O Brasil reúne todas as condições e possui uma enorme diversidade de recursos energéticos que, se bem orquestrados e utilizados, podem oferecer uma grande vantagem competitiva e estratégica em relação a outros países, contribuindo de forma decisiva para acelerar a retomada do crescimento econômico e a reindustrialização do país.
Felipe Kury é ex-diretor da ANP – Agência Nacional de Petróleo e Managing Partner na FK Energy Partners.