Localização na lavoura muda a percepção da cana-de-açúcar em relação à passagem do tempo

Plantas situadas em áreas que recebem luz solar mais tardiamente ao amanhecer demoram até duas horas para iniciar a fotossíntese, revela estudo conduzido na USP. Trabalho foi apresentado durante a conferência BBEST 2020-21

A despeito de compartilharem o mesmo espaço, os espécimes de cana-de-açúcar de uma lavoura percebem as transições nas fases do dia em momentos diferentes. Algumas se dão conta de que amanheceu e “despertam” com um atraso de até duas horas em relação a outras, como se estivessem em outro fuso horário.

Essa diferença na percepção das plantas em relação à passagem do tempo pode estar relacionada com sua localização na lavoura. Os espécimes situados no lado leste, por exemplo, recebem luz solar direta com antecedência de duas horas em relação aos que estão localizados na face oeste da plantação. Dessa forma, as células das folhas iniciam em momentos distintos a fotossíntese, por meio da qual produzem açúcares que serão usados para mantê-las e fazê-las crescer.

A descoberta, feita por pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) por meio de um projeto apoiado pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pode contribuir para aumentar a produtividade dos canaviais.

O estudo foi publicado na plataforma bioRxiv, ainda sem revisão por pares, e apresentado em palestra durante a Brazilian Bioenergy Science and Technology Conference (BBEST) 2020-21.

O evento on-line, realizado no fim de maio, faz parte das atividades do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN) e ocorreu paralelamente à segunda edição da Biofuture Summit, promovida pela Plataforma para o Biofuturo – consórcio formado por 20 países, incluindo o Brasil, com o objetivo de fomentar soluções de transporte de baixo carbono e a bioeconomia.

“Observamos que a percepção da passagem do tempo pela cana-de-açúcar é afetada pela posição da planta na lavoura”, disse Carlos Hotta, professor do IQ-USP e coordenador do projeto.

O pesquisador e colaboradores têm se dedicado nos últimos anos a estudar o ritmo circadiano das plantas – os mecanismos moleculares utilizados por elas para ajustar o relógio biológico de modo a perceber a passagem do tempo e, assim, coordenar as funções fisiológicas.

Uma das perguntas que querem responder é como o relógio biológico das plantas contribui para a produtividade da lavoura e como isso pode ser útil para a agricultura.

Um experimento inicial, feito em 2002 por pesquisadores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, onde Hotta fez seu doutorado, foi fundamental para avançar no entendimento dessa questão. Os pesquisadores observaram que versões da Arabidopsis thaliana, planta da família da mostarda, modificada geneticamente para superexpressar um gene marcador do relógio circadiano, fixavam menos carbono, tinham menor eficiência no uso de água e, em geral, eram menos produtivas do que as plantas do tipo selvagem.

“Essa constatação nos motivou a analisar o relógio circadiano de plantas com safras muito produtivas, como a cana-de-açúcar”, afirmou Hotta.

As análises de experimentos controlados com cana-de-açúcar em salas de cultivo e expostas à luz constante indicaram que a amplitude do relógio circadiano da planta é muito alta em comparação com outras culturas.
A planta expressa mais genes circadianos como o LHY, transcrito ao amanhecer, e o TOC1, expresso ao anoitecer, na transição entre a luz e a escuridão, do que a Arabidopsis, o milho, as gramíneas do gênero Brachypodium e o arroz.
“Vimos que mais de 30% das transcrições de genes da cana são reguladas pelo relógio circadiano. Isso é muito mais do que observamos em outras plantas usando técnicas de análise semelhantes”, disse Hotta.

A fim de analisar o ciclo circadiano da cana no campo, os pesquisadores fizeram um experimento em que colheram espécimes da planta com nove meses a cada duas horas, durante 26 horas, antes do amanhecer, logo depois do sol raiar e no dia seguinte.

Foram analisadas as folhas, o colmo apical – responsável pelo alongamento do caule – e um colmo mais abaixo, que armazena açúcar. Os resultados das análises mostraram que as folhas apresentavam maior expressão de genes circadianos do que os entrenós. As plantas também apresentavam um pico de expressão do gene LHY no início do dia e de produção de metabólitos mais tarde em comparação com espécimes mais novas, com quatro meses.

“Com base nessa observação, levantamos a hipótese de que o atraso no pico de expressão do gene LHY nas plantas mais velhas, com nove meses de idade, poderia estar relacionado com o fato de terem sido sombreadas umas pelas outras na lavoura. Dessa forma, estariam sofrendo um atraso na detecção da luz solar ao amanhecer”, contou Hotta.
A fim de testar essa hipótese, os pesquisadores analisaram a expressão do gene LHY em espécimes da planta situadas em diferentes áreas da lavoura, como na parte leste, que recebe luz solar mais cedo, e na oeste, iluminada mais tardiamente.

Os resultados das análises indicaram que o pico de expressão do gene LHY é atingido mais tarde nas plantas localizadas na parte oeste em comparação com as situadas no lado leste da lavoura.
“Assim como para os humanos, dormir duas horas a mais ou acordar duas horas antes faz uma grande diferença para as plantas”, afirmou Hotta.

Também foram observadas diferenças na expressão de LHY entre as plantas em distâncias muito menores, de centímetros entre elas.

“Estamos observando que os microambientes são capazes de causar mudanças no relógio circadiano das plantas. Apesar de dividirem uma mesma lavoura, as plantas se comportam como se estivessem vivendo em fusos horários diferentes”, disse Hotta.

O artigo Field microenvironments regulate crop diel transcritpt and metabolite rhythms (DOI: 10.1101/2021.04.08.439063), de Luíza Lane Barros Dantas, Maíra Marins Dourado, Natalia Oliveira de Lima, Natale Cavaçana, Milton Yutaka Nishiyama-Jr, Glaucia Mendes Souza, Monalisa Sampaio Carneiro, Camila Caldana e Carlos Takeshi Hotta, pode ser lido na plataforma bioRxiv em www.biorxiv.org/content/10.1101/2021.04.08.439063v1. (Agência FAPESP)

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