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Nova política nacional de biocombustíveis vai premiar produtores eficientes

Um decreto federal deu um passo importante para concretizar a nova Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), que busca revigorar a indústria de bioenergia do país, além de reduzir as emissões de gases estufa conforme compromisso assumido pelo Brasil na Conferência de Paris, em 2015. Gestada nos últimos dois anos por técnicos do Ministério de Minas e Energia (MME), a RenovaBio foi aprovada pelo Congresso no final do ano passado. Seu decreto de regulamentação, assinado no dia 14 de março pelo presidente Michel Temer em uma cerimônia em Ribeirão Preto (SP) que marcou a abertura da safra de cana-de-açúcar, definiu um cronograma para que a política passe a vigorar em um prazo de dois anos. O Conselho Nacional de Política Energética, que assessora o governo, irá determinar até junho as metas compulsórias para a redução de emissões de carbono no uso de combustíveis no país, que serão válidas para o período de 2018 a 2028. Em seguida, a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis irá desdobrar essas grandes metas em objetivos individuais a serem cumpridos por cada uma das distribuidoras de combustível brasileiras a partir do dia 24 de dezembro de 2019.

A principal inovação da política é a criação de um mecanismo que gera um ativo financeiro para os produtores de biocombustíveis, como etanol, biodiesel, biogás ou bioquerosene, proporcional ao volume produzido e que se baseia em critérios de eficiência. Quem fabrica biocombustíveis terá direito a Créditos de Descarbonização (CBIOs), títulos negociados em bolsas que constituirão uma nova fonte de renda para o setor. Já as distribuidoras serão obrigadas a comprar esses papéis em quantidade correspondente a sua participação no mercado de combustíveis fósseis. “O objetivo desse mecanismo é descarbonizar gradualmente a matriz energética brasileira”, diz o economista Miguel Ivan Lacerda de Oliveira, diretor de biocombustíveis da Secretaria de Petróleo e Gás do MME, um dos artífices da nova política.

Como resultado dessa política, o governo prevê ampliar a produção de etanol dos atuais 30 bilhões de litros para cerca de 50 bilhões de litros em 2030 e elevar a de biodiesel de 4 bilhões para 13 bilhões de litros no mesmo período. Ao mesmo tempo, calcula uma economia de 300 bilhões de litros de gasolina e diesel importados nos próximos anos. Projeta-se também um aumento de 10 milhões de hectares na área plantada dedicada à bioenergia. Os idealizadores do programa ressaltam que o Brasil tem hoje 198 milhões de hectares em pastagens, boa parte delas de baixa produtividade, que poderiam ser empregadas na produção dessas culturas.

O mecanismo proposto também busca estimular um aumento de produtividade das áreas já plantadas. O fabricante de biocombustíveis, sempre que fizer uma venda, terá direito a emitir CBIOs, mas a quantidade de créditos a que cada um terá direito dependerá de uma análise de seus processos de produção – quanto menor o balanço de emissões de gases estufa da empresa, mais créditos ela poderá receber. Essa avaliação vai reverter em uma nota de eficiência energético-ambiental atribuída a cada produtor. Um software, o Renovalc, está sendo desenvolvido para fazer cálculos precisos.

Espera-se que essa lógica estimule as usinas a utilizar as melhores práticas de plantio e de geração de bioenergia, além de adotar novas tecnologias. Usinas que, além de produzir etanol, também queimam resíduos da cana para gerar eletricidade ou produzem biogás para substituir o diesel usado nas máquinas poderão obter mais créditos do que as que não aproveitam a palha, o bagaço ou a matéria orgânica da vinhaça. “Sabemos que o etanol é sustentável, que emite em média 80% menos carbono do que combustíveis fósseis, mas alguns produtores têm indicadores econômicos e ambientais melhores do que outros e é justo que sejam reconhecidos”, explica o agrônomo Heitor Cantarella, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). “Com a RenovaBio, será possível mudar a forma como produzimos bio-energia e mostrar que o segundo maior produtor de etanol e de biodiesel do mundo está engajado em fabricar combustíveis ainda mais limpos.”

Segundo Cantarella, a nova política deve dar impulso a uma vertente de pesquisa em bio-energia que busca alternativas tecnológicas para reduzir emissões. Em um artigo de opinião que publicou em fevereiro no jornal britânico Financial Times, ele chamou a atenção para o peso do uso de certos fertilizantes no balanço de emissões de carbono em plantações de cana e para as alternativas capazes de reduzir esse impacto, como o uso de substâncias que inibem a liberação de óxido nitroso, um gás de efeito estufa liberado por adubos nitrogenados. “Qualquer tipo de redução de emissão será bastante valorizado a partir de agora.” Alguns projetos apoiados pelo programa Bioen há tempos investigam a natureza das emissões de carbono. “O uso rotineiro de palha e vinhaça como fertilizantes nos canaviais tende a aumentar as emissões, mas há grupos de pesquisadores procurando formas de atenuar isso”, afirma. “De todo modo, as emissões no Brasil causadas por uso de fertilizantes são inferiores aos índices médios considerados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, o IPCC.”

Também se espera que a nova política incentive a superação de obstáculos tecnológicos e a busca de viabilidade econômica para implantar métodos mais sustentáveis de produção de bioenergia, notadamente o etanol de segunda geração, obtido a partir de celulose e de resíduos orgânicos. “A expectativa é de que a RenovaBio se transforme também em um driver de desenvolvimento tecnológico”, diz o engenheiro-agrônomo Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos fundadores da Granbio, empresa que inaugurou a primeira usina de etanol de segunda geração no Brasil, instalada em 2014 em São Miguel dos Campos, em Alagoas. Amarante, que deixou a empresa em 2016, diz que os problemas tecnológicos da linha de produção foram resolvidos e que a empresa agora trabalha para equacionar questões financeiras para implantar novas soluções e ampliar a operação. “A alta do preço do petróleo atrapalhou e afugentou os investidores em bioenergia, mas é esperado que agora, com a RenovaBio, surja uma nova onda de financiamento.” O MME projeta um crescimento do interesse privado na indústria de biocombustíveis e prevê investimentos de R$ 90 bilhões até 2030 apenas na produção de bioetanol.

Luciano Rodrigues, responsável pela área de economia e análise setorial da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), vislumbra dois impactos principais da RenovaBio. “Ela vai dar mais previsibilidade a todos os agentes do mercado, dizendo a cada um deles qual será o papel dos biocombustíveis no futuro”, diz. O segundo impacto está relacionado aos CBIOs. “Os biocombustíveis têm o que chamamos de externalidades positivas: quando alguém usa um combustível renovável, isso gera um benefício para toda a sociedade, com uma emissão menor de gases estufa. O mecanismo criado reconhece essas externalidades, recompensa a produção de biocombustíveis e tende a ampliar a sua oferta. A produção de biocombustíveis vai crescer com a busca de eficiência ambiental e econômica.”

A nova estratégia surge em um momento em que a indústria brasileira de biocombustíveis tenta superar uma fase de crise e baixo investimento. Segundo um levantamento da consultoria RPA, de Ribeirão Preto, especializada em negócios da cana, 76 das 444 usinas do país estavam paradas no segundo semestre do ano passado, parte delas em situação de insolvência. “A RenovaBio criou uma demanda nova para os produtores de biocombustíveis. Não é por acaso que está sendo comemorada pela indústria canavieira”, diz Daniela Stump, especialista em direito ambiental da Machado Meyer Advogados. “Ao mesmo tempo, gerou uma grande novidade na política ambiental brasileira, que vinha perdendo efetividade há alguns anos. É a primeira vez que se criam metas compulsórias para redução de emissões. Eu nunca tinha visto um compromisso tão firme”, ressalta Daniela, que faz, contudo, um alerta: “É preciso agora criar metas para outros setores da economia. Não é justo eleger apenas um setor para o papel de vilão. Todos devem participar do esforço de proteção ao clima, de acordo com as suas emissões de gases de efeito estufa e capacidade de redução”.

Os idealizadores da RenovaBio adaptaram políticas adotadas nos Estados Unidos e na União Europeia. “Há estratégias testadas há mais de 10 anos e uma boa literatura sobre o assunto mostrando o que deu certo e o que deu errado. Aproveitamos essa experiência”, diz Miguel Ivan de Oliveira, do MME. A principal inspiração veio do Low Carbon Fuel Standard (LCFS), política pública em vigor no estado da Califórnia. O LCFS define metas de redução de emissões e rotas para alcançá-las utilizando diferentes tecnologias e combustíveis – e também estabelece recompensas específicas para cada rota. Já a RenovaBio não delimita trilhas tecnológicas e os créditos de descarbonização terão um valor único, a ser definido pelo mercado. “Na RenovaBio, não são eleitos a priori quais serão os ‘campeões’. Cada biocombustível competirá para atingir a meta de descarbonização. A produção de biocombustível que for mais eficiente do ponto de vista energético e ambiental é a que vai poder emitir mais créditos e, portanto, será mais recompensada”, escreveu o economista Plínio Nastari, presidente da consultoria DataAgro, em um artigo publicado no jornal Folha de Pernambuco.

Embora a lei da RenovaBio tenha sido regulamentada com rapidez, ainda há variáveis sem definição, a exemplo das metas individuais impostas às distribuidoras e a forma de calcular a eficiência dos produtores. Como a cotação dos CBIOs vai oscilar de acordo com a oferta e a procura, é difícil antever como será o funcionamento do mercado antes de conhecer as metas. “Mas é possível imaginar que o valor dos créditos cairá se houver um aumento do preço do petróleo, porque isso já seria um desestímulo ao consumo de combustíveis fósseis”, diz Luciano Rodrigues, da Unica. Na avaliação de Gonçalo Amarante, os créditos devem ter boa liquidez. “Se investidores hoje compram moedas virtuais cujo lastro é obscuro, certamente haverá interesse em créditos de carbono emitidos com base em uma produção sustentável.”

A permissão para que qualquer pessoa participe da compra e venda de créditos é alvo de controvérsia. A medida, que busca dar liquidez ao mercado, é vista com desconfiança pelas distribuidoras, que temem especulação com os títulos. Caso o custo das CBIOs fique muito pesado para as empresas, existe o risco de que elas optem por pagar a multa pelo descumprimento da meta, que durante a tramitação do projeto da RenovaBio no Congresso foi reduzida de R$ 500 milhões para R$ 50 milhões no máximo por distribuidora. É certo que as empresas terão alguma flexibilidade. Uma pequena parte da meta individual, de no máximo 15% do total, poderá ter seu cumprimento adiado para o próximo ano, mas não será possível utilizar o recurso logo em seguida. As distribuidoras ficarão isentas da obrigação de comprovar a descarbonização se firmarem contratos de compra de créditos por períodos longos – o objetivo é ajudar a estruturar o mercado de CBIOs. “Temos o alicerce de uma nova política, mas falta organizar adequadamente a sua aplicação. Será preciso criar mecanismos para evitar que se burle o sistema”, diz Rodrigues.

 

 

 

Revista Pesquisa FAPESP

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