*Plinio Nastari
O progresso das nações está diretamente ligado ao ambiente institucional e à segurança jurídica oferecidos por seus arcabouços legais e instituições. Os Estados Unidos da América iniciaram seu desenvolvimento muito depois do Brasil, e não se pode dizer que sua localização geográfica, solo, clima e disponibilidade de recursos naturais tenham sido mais privilegiados do que os daqui. Mas lá, desde cedo, foi construído um regramento jurídico claro e eficiente com condições para o seu efetivo cumprimento, que criou um sentido de Justiça aplicada de forma igualitária e certa a todos os agentes, e que levou a uma maior eficiência do sistema econômico e consequente estimulo a investimentos – e com eles emprego, renda, enfim, o progresso.
As Ilhas Britânicas não possuem muitos recursos naturais além do carvão. Com exíguos solos férteis e insolação limitada, desenvolveu-se como nação e obteve progresso pela qualidade e eficiência de suas leis. A segurança do seu sistema legal é reconhecida mundialmente a ponto de muitas empresas preferirem estabelecer contratos baseados na lei inglesa, fazendo com que se consolidasse como grande polo de serviços e arbitragem de negócios. A transferência destes mesmos princípios para Hong Kong e Cingapura, trouxe igual progresso a essas localidades.
No Brasil, ao contrário, não é incomum processos levarem décadas para serem concluídos, assim como arbitrados na justiça comum o cumprimento de contratos. Muitos setores tem sido afetados pela insegurança jurídica e a multiplicidade de decisões e recursos em vários níveis, até se chegar a uma conclusão final.
Por sua relevância econômica, um dos setores mais afetados é o do açúcar e etanol, talvez a atividade econômica organizada mais antiga, e uma das que tem maior expressão econômica em toda a agroindústria brasileira. Ocupando relativamente pouca extensão territorial, gera quase um milhão de empregos diretos e dois milhões e meio de empregos indiretos, e sustenta uma extensa cadeia de produção e comercialização com ramificações em vários outros setores-chave da economia. Produz alimento e energia líquida na forma de etanol e bioeletricidade, capazes de manter o mercado interno abastecido e exportar volumes consideráveis, com grande impacto positivo na balança comercial. Em 2019, o etanol substituiu 450 mil barris por dia, ou 46% de toda a gasolina consumida no país, sendo elemento central da engenharia automotiva aqui desenvolvida. Atualmente, é considerado eixo principal do futuro da mobilidade sustentável, com modernas tecnologias de motorização através da eletrificação com biocombustíveis, híbridos em paralelo e em série.
Durante décadas, o setor sofreu a intervenção do Estado. Os preços do açúcar e etanol praticados por produtores eram determinados pelo governo, e as exportações eram monopólio estatal. Exportações foram privatizadas em 1990, e preços liberalizados em julho de 1995 para o açúcar, em maio de 1997 para o etanol anidro, e em fevereiro de 1999 para o etanol hidratado e a cana-de-açúcar.
Em pelo menos dois períodos, entre 1984 a 1989, e entre 2011 e 2014, o setor sofreu os efeitos tóxicos da intervenção do Estado nos preços. No primeiro período, por preços praticados para o etanol abaixo dos custos médios apurados por determinação do próprio governo, segundo regra definida em legislação específica. No segundo episódio, pela decisão do governo, através da Petrobras, de subsidiar fortemente o preço da gasolina, que compete com o etanol em mercado. Nas duas situações, o impacto nos preços trouxe consequências graves para o etanol e seu co-produto, o açúcar.
Na crise gerada pela pandemia do COVID-19, o setor sofre o impacto duplo da queda de preços e de consumo, exatamente no início da colheita da cana, que não pode ser armazenada nem transportada a longas distancias, comprometendo o capital de giro e a sobrevivência de muitas empresas, que em condições normais são responsáveis pelo abastecimento de combustível e de alimento, e a manutenção do emprego e da atividade econômica de importantes polos no interior.
Aproxima-se em breve decisão crucial para o setor no STF, por recurso impetrado pela União. Estará em julgamento o critério para identificação do dano causado pela política de preços praticados pelo governo no período de 1984 a 1989. A questão é se o dano deve ser calculado pela perda de receita, advinda da ação direta do governo ao definir preços em desacordo com os custos médios do setor, ou se o dano deve ser calculado pela verificação do eventual prejuízo contábil de cada usina, o que implicaria incorporar na avaliação variáveis completamente independentes do fato gerador do dano. Na prática, se acolhida a tese da União, implicaria compensar e privilegiar os mais ineficientes em detrimento dos relativamente mais eficientes, embora todos, igualmente, tenham sofrido os efeitos da perda de receita, relacionada ao preço do produto.
Em realidade, há 15 anos o STF concede indenizações com base no preço que deveria ter sido fixado, observado o custo médio apurado pela FGV conforme determinado pela regra vigente à época. Já são 40 precedentes inclusive em rescisórias, 61 ações transitadas em julgado, e 138 precatórios expedidos reparando o dano a 72 porcento das usinas afetadas, por valor que corresponde a 88 porcento do dano total calculado. Neste contexto, alterar a jurisprudência atentará contra a segurança jurídica e afetará a isonomia e a neutralidade concorrencial do setor.
O Brasil, e em particular esse setor, não precisa de mais casuísmos, e sim de regras claras e julgadas de forma coerente e consistente com a legislação. A quebra do contrato gera insegurança jurídica que compromete a continuidade da atividade para muitas empresas, e a viabilidade de se repetir e incrementar investimentos, em um setor que é mais do que estratégico para o país. Que o STF julgue mais esta tentativa de tumultuar o processo com a visão de longo prazo sobre o que está realmente em jogo, não só para o setor de açúcar e etanol, mas para a condução da atividade econômica organizada como um todo em nosso país.
*Presidente da DATAGRO, e Representante da Sociedade Civil no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE)