O setor de cana-de-açúcar está diante de uma estrada longa. De mão dupla. Uma pista leva à tremenda oportunidade. A outra traz brutal desafio. Seu traçado foi desenhado pela lei que criou o RenovaBio, programa de incentivo ao consumo de biocombustíveis, em especial de etanol. A expectativa é de um salto na produção atual de 33 bilhões de litros, para mais de 50 bilhões de litros em 2030. A nova legislação começa a valer no primeiro dia do próximo ano.
Governo e empresários esperam um novo ciclo de investimentos. Seria algo como outro Próalcool, compara Miguel Ivan Lacerda, diretor do Departamento de Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia. Porém, mais duradouro e sustentável. “O produtor precisará pensar de forma estratégica, pois a nova política prevê funcionamento dentro das leis de mercado”, afirma Lacerda.
Mas o caminho entre a lavoura e a bomba de abastecimento é sinuoso. O setor ainda sofre com uma crise profunda, que resultou no fechamento de cerca de uma centena de usinas na última década. O endividamento ultrapassou os 100 bilhões de reais, segundo o Itaú BBA. Muitas empresas ainda estão em recuperação judicial (25%) e com problemas sérios de caixa (25%). A outra metade está se recuperando e tem baixo endividamento, afirma Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-açúcar (Unica). Este detalhe é crucial para que a produção responda à demanda criada.
Pelos cálculos da Unica, para a produção alcançar a meta dos 50 bilhões de litros será preciso investir cerca de 100 bilhões de dólares. Este montante leva em conta três frentes: ampliar fábricas, reativar algumas que fecharam e construir 30 novas unidades de grande porte. Neste contexto, está contemplada também a oferta de cana para que o Brasil mantenha sua fatia no mercado internacional de açúcar. O consumo do produto tem previsão de crescimento entre 1% e 1,5% ao ano.
Desta forma, a produção brasileira tem espaço para atingir 900 milhões de toneladas de cana por safra em dez anos ? a colheita está agora na casa de 600 milhões de toneladas. Hoje, a atividade ocupa cerca de 10 milhões de hectares. É então razoável imaginar que o crescimento de área seja de ao menos três milhões de hectares neste período. “Precisamos pensar primeiro em aumentar a produtividade?, crava Alexandre Prado, diretor de economia verde do WWF Brasil. Ele diz ainda que novas áreas de plantio não podem redundar em mais desmatamento. ?Sem derrubar nenhuma árvore, claro”, concorda Gussi, da Unica.
Cana transgênica
Entre as apostas para melhorar o desempenho da lavoura aparece a cana transgênica. Algo ainda muito novo e incipiente, porém promissor. A segunda variedade modificada foi aprovada no final do ano passado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Batizada de CTC9001BT, a nova planta começa a ser distribuída aos produtores pelo Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), para cultivo já nesta safra. “Sua grande vantagem é ser resistente à broca, além de ter um potencial produtivo enorme”, afirma Luiz Antônio Paes, gerente de produtos do CTC.
Paes se refere a uma das piores pragas da lavoura canavieira, que tem nome científico de Diatrea Spp. Presente em todas as regiões, a doença causa um prejuízo anual de mais de 5 bilhões de reais aos produtores. A nova cultivar foi modificada a partir de outra, considerada a melhor e mais produtiva, dentro do portfólio do CTC, que em 2019 completa 50 anos de pesquisas. A nova variedade tem potencial para ultrapassar com tranquilidade a colheita média de 100 toneladas de cana por hectare.
Na verdade, esta é a segunda variedade transgênica resistente a insetos, liberada pelo CTNbio. Em 2017, foi a vez da CTC20BT começar a ser multiplicada por 60 usinas da região Centro-Sul do Brasil. No entanto, elas têm características distintas e são consideradas complementares entre si. A primeira foi desenvolvida para solos mais ricos e com maior incidência de chuvas e deve ser colhida no meio da safra. Ao passo que a segunda é indicada para ambientes mais restritivos e para ser colhida no início da safra.
É claro que o efeito positivo da transgenia ainda levará tempo para ser contabilizado. Enquanto isso, os produtores sabem que precisam retomar as melhores práticas de manejo, mesmo dentro das variedades convencionais. A crise financeira trouxe ao campo sérios problemas de investimento. Também a falta de planejamento para substituir o corte manual pelo mecânico causou perdas significativas tanto na produtividade quanto na qualidade da matéria-prima.
Há várias safras a produtividade média dos canaviais patina. Tanto que a última colheita registrou 73 toneladas por hectare. O desempenho nos anos anteriores ficou em torno de 75 toneladas por hectare. É um resultado pífio, quando se leva em conta que em 2009 se colheu 88 toneladas por hectare.
O primeiro passo para interromper este círculo vicioso é a renovação dos canaviais. O ideal é que as usinas e os produtores independentes refaçam a cada ano o plantio de 20% de sua área. Isso para ter sempre cana nova e produtiva. Ocorre que a média de reforma nas lavouras chegou a cair para cerca da metade do indicado. Ou seja, o canavial envelhecido leva a perdas enormes, pois a cada novo corte o rendimento cai de forma significativa.
Moeda verde
Eficiência é o ponto chave do RenovaBio, resumem Marcelo Morandi e Nilsa Ramos, pesquisadores da divisão de meio ambiente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O programa exigirá que além de produzir mais na mesma área, a cadeia do etanol comprove a redução de emissões em todo o processo produtivo. Significa que serão levados em conta fatores que influem na diminuição de poluentes emitidos desde o preparo do solo, colheita, transporte da matéria prima até a fabricação efetiva do biocombustível.
Trata-se de uma questão nevrálgica. Neste resto de ano, os fabricantes interessados em lucrar com o etanol terão de fazer a certificação de seu processo produtivo. É a premissa para que possam vender na Bolsa de Valores, os Créditos de Descarbonização (CBios), a partir de 2020. Uma espécie de moeda verde, que precisa ser comprovada por uma empresa inspetora, cadastrada na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Em resumo, cada empresa que passar por inspeção receberá um certificado com nota de eficiência energética e ambiental, com validade de três anos. A quantidade de CBios é proporcional ao volume de etanol produzido. Além disso, cada CBio corresponde a 1 tonelada de carbono, que deixa de ir para a atmosfera com a utilização de biocombustível, na comparação com o correspondente fóssil.
As empresas distribuidoras precisarão comprar em bolsa os CBios, a fim de atingir metas individuais de redução, correspondentes à fatia de cada uma no segmento de combustíveis fósseis. Se não cumprirem tais metas, as companhias serão multadas e podem até mesmo ser fechadas. Portanto, o mecanismo de venda dos certificados é um componente importante para remunerar o produtor de biocombustível. E, claro, estimular os investimentos, porque a nova política definida por lei não prevê subsídios.
O papel do governo será apenas o de definir as metas, que serão fiscalizadas pela agência reguladora do setor. O resto será com o mercado.
Acordo de Paris
A nova legislação que criou o RenovaBio, aprovada em 2017, está em sintonia com o Acordo de Paris, assinado em 12 de dezembro de 2015, durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças do Clima (COP21). O Brasil se comprometeu com a redução de suas emissões de gases de efeito estufa em até 37%, comparadas aos níveis de 2005, quando jogou no ar 2,05 bilhões de toneladas de gás carbônico (CO2) equivalente. A previsão é de que esta meta seja atingida em 2025, elevando-se para 43% em 2030.
Entre as principais ações a serem implementadas pelo país, despontam a redução do desmatamento, reflorestamento e restauração de 12 milhões de hectares, além de aumentar o uso da bioenergia na matriz energética e melhorar a infraestrutura dos transportes. Como este segmento responde por quase metade das emissões, o uso de combustíveis mais limpos como o etanol se tornou imperativo – e óbvio. O produto feito de cana polui em torno de 90% a menos que a gasolina. Globo Rural